quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ronaldo também há-de ser como Figo


Carlos Godinho, de 60 anos, é o director desportivo da Federação Portuguesa de Futebol. Após ter cumprido o serviço militar, entrou na FPF há 29 anos, através de concurso público. Começou na área da formação de quadros e, em 1984, ajudou a criar o departamento técnico das selecções, com Carlos Queiroz, Jesualdo Ferreira e Mirandela da Costa, entre outros. Esteve com Queiroz nas conquistas dos títulos de sub-20 e desde 1991 ocupa-se da selecção principal – desde então, só não esteve presente num Portugal-Alemanha de preparação para o Euro 96, por estar num workshop da UEFA.

Actualmente, é o responsável por todas as selecções, mas, após o Mundial, deverá ficar apenas com a equipa principal, porque “a sobrecarga é grande”.

Depois de ter recusado convites de FC Porto, Sporting e Benfica e de quase ter saído para a selecção inglesa em 2006 (teria ido se Scolari tivesse assumido o cargo de seleccionador de Inglaterra), Godinho não se vê a fazer outra coisa até deixar a federação. Nesta entrevista ao PÚBLICO, feita antes do início do estágio na Covilhã, assume uma admiração especial por Scolari e defende que Cristiano Ronaldo vai ser um líder ao nível de Luís Figo.

Já tivemos o Figo, mas hoje o Ronaldo é uma estrela num mundo muito mais mediatizado. Isso coloca-lhe muitas dificuldades?
Sim. É bom, mas também tem pontos negativos. Quando se fala de Portugal, fala-se de Cristiano Ronaldo, como antes se falava de Figo. A pressão sobre Ronaldo é de tal maneira grande que nos obriga a ter muitos cuidados. Não podemos pensar só na selecção, temos de pensar na selecção e no Cristiano Ronaldo.

Isso significa blindar mais a selecção?
Sim, é exactamente isso. Vou dar um exemplo: fomos jogar à Finlândia em 2006. Havia cinco mil pessoas no treino e as miúdas estavam com uma tal camada de histeria que não se calavam e gritavam cada vez que o Ronaldo tocava na bola. Pedimos a um responsável finlandês para avisar que ou paravam de gritar ou tínhamos de fechar o treino.

Pode contar mais algum episódio?
É inacreditável o que as pessoas fazem e inventam para ter um autógrafo, uma camisola, um par de meias. Fazem tudo e temos de ter atitude proactiva para perceber o que vai acontecer.

Hoje não há Figo, Rui Costa, Couto. Tem-se discutido muito se Cristiano Ronaldo pode ser o líder da selecção…
Ninguém nasce ensinado na vida. Todos somos fruto do nosso percurso, por mais ouro que tenha o berço. O Ronaldo, como qualquer outro jogador, não teve a formação no berço. A formação dele foi feita gradualmente e com muita vontade dele. Hoje, mesmo nas conferências de imprensa do Real Madrid e da selecção, vê-se que é uma pessoa jovem diferente. Não é o mesmo que era há uns anos. O Figo que terminou a carreira não foi o mesmo que a iniciou. Estou em condições de dizer que o Cristiano também há-de ser como o Figo. É uma pessoa que está em crescendo. O que aconteceu é que com o Figo havia pessoas mais velhas, houve uma passagem de testemunho gradual, e quando chegou a vez dele estava preparado. O Cristiano foi lançado às feras. Foi considerado o melhor jogador do mundo e de um momento para o outro está como figura de cartaz e sem retaguarda. Cristiano Ronaldo está em progressão e quando ele sair as pessoas vão lembrar-se dele como hoje se lembram do Figo. Não se pode é pedir ao Ronaldo que aos 25 anos seja o que o Figo era aos 34. As pessoas têm de compreender.

Já esteve em más e boas provas. Qual é o seu feeling desta vez?
Passando a primeira fase, tudo é possível e a experiência que tenho é que o jogador português se agiganta nesses momentos. Se nos adaptarmos bem e estivermos bem mentalizados para as dificuldades (um país diferente, os adversários) que vamos encontrar, vamos passar e podemos ir em frente. O primeiro jogo é fundamental, mas não decisivo. Nenhuma equipa, nem as melhores, como Brasil e Espanha, podem dizer que vão ganhar. E já ganhámos à Espanha.

Já trabalhou com muitos seleccionadores…
Eu e Queiroz tratamo-nos por tu. Trabalhámos nove anos juntos, depois ele foi embora e agora este reencontro não foi fácil, porque os resultados não foram bons no início, mas felizmente compôs-se tudo. Felizmente estamos no Mundial, depois de algumas dificuldades internas, no jogo com Dinamarca e Albânia. Depois acalmou e fomos em crescendo.

Houve alguém especial?
Scolari foi a pessoa que mais me marcou. Tenho muito orgulho em ser amigo dele e ele ser meu amigo. É uma pessoa diferente, que faz dos afectos e da proximidade algo muito importante. E eu também sou assim, mais de coração na boca. Faz tudo pelo seu amigo, se for preciso até dá um murro. Quando ele chegou, perguntaram-lhe se queria continuar comigo, uma pessoa que tinha tido uns problemas uns meses antes [Mundial 2002]. Ele disse que enquanto não conhecesse não decidia. Passado um mês, disse que eu era com quem ele queria trabalhar. E jamais esquecerei isso.

O que destacava Scolari era a faceta de motivador?
O Carlos Queiroz também foi assim nos juniores, porque essa componente era muito forte. Éramos os pais dos miúdos, éramos uma família. No futebol profissional, é diferente. E os brasileiros também são diferentes de nós. Carlos Queiroz agora esteve muito tempo fora, vem de um país frio, como a Inglaterra, mas hoje penso que ele tem um grupo e as pessoas vão unidas para o Mundial.

Já teve convite de clubes?
Em 1996, fui convidado para o FC Porto pelo senhor Pinto da Costa. Em 2001, fui convidado para o Sporting por José Eduardo Bettencourt. E em 2004 pelo José Veiga para o Benfica.

Não aceitou porquê?
Em 1996, houve qualquer coisa que não percebi, porque as coisas estavam mais ou menos acertadas. Em 2001, porque tinha uma grande ambição de ir a um Mundial. Era a maior ambição da minha vida e não trocava um Mundial por um clube. Curiosamente, correu mal no Mundial e correu bem no clube, porque o Sporting foi campeão. Em 2004, não fui, porque não chegámos a acordo.

Arrepende-se disso?
Não. O meu caminho estava traçado desde o início. Em 2006, estive perto de ir para a selecção inglesa se o Scolari tivesse ido. É a primeira vez que estou a contar isto.

As pessoas vêem-no um pouco como o senhor selecção…
A selecção não nasceu comigo. Tem uma história rica desde 1921 até hoje, mas de facto o departamento nasceu com Carlos Queiroz e comigo. Ele saiu, eu fiquei. Fui um pouco associado a isso.

Vê-se como o pai dos jogadores?
Hoje já não tanto, porque há uma relação diferente. Como viu na relação com o Pauleta [durante a entrevista o antigo internacional telefonou a Carlos Godinho], até àquela geração os jogadores não tinham uma ligação muito forte com os seus agentes. Tinham agentes, mas a selecção era um caso à parte. Hoje têm agentes e muitas vezes não se libertam. Como em todo o mundo, havia uma maior proximidade dos jogadores com as selecções. Claro que continuo a ter excelentes amigos e excelentes relações com eles, mas especialmente com os mais novos já não é a mesma coisa. Há mais profissionalismo na gestão da carreira deles e muitas vezes já não passa muito pela relação directa.

Quer dizer que o ambiente é menos familiar?
Não. Quando eles cá estão mantém-se. Os novos são integrados, porque ainda temos gente como Paulo Ferreira. Deco, Ricardo Carvalho, Miguel, jogadores mais antigos que fizeram a passagem de testemunho. Mesmo o Cristiano ainda esteve com Figo, Couto e Rui Costa.

Mas quando diz que é diferente, traduz-se em quê?
Havia uma relação muito íntima entre jogador e selecção. Às vezes ligavam-me a perguntar: “Achas que vou ser convocado?” Hoje já não acontece tanto, porque está tudo muito profissionalizado.

Conviveu e convive com alguns dos melhores jogadores portugueses. Algum é mais especial para si, pela relação de amizade?
Tinha um grupo de jogadores que fizeram o Campeonato do Mundo de 1991. O João Pinto afastou-se depois daquele problema de 2002, mas somos muito amigos, apesar de não nos vermos muito. O Jorge Costa, Fernando Couto, Paulo Sousa, Figo, Pauleta, Ricardo, Paulo Ferreira, Miguel, Maniche. São jogadores com quem tenho uma relação mais próxima. Talvez o Pauleta, Figo e Couto sejam os que mantêm mais contacto comigo. Tenho boa relação com Costinha e Rui Costa, embora seja mais fácil com os que não têm ligações aos clubes, porque isso tira-lhes disponibilidade. Público

Fonte: Público

Sem comentários: