Verdade de Pacheco: "Uns fumavam e davam tudo, outros bebiam leitinho e não se mexiam"
Treinador português no activo, foi campeão nacional e não foi falado para o Sporting, ao contrário de muitos. Quem? Jaime Pacheco. O homem que levou o Boavista ao título está longe, no Al-Shabab (Arábia Saudita), a ganhar dinheiro mas a massacrar os gostos. Perdeu a observação da beleza feminina, perdeu o tinto e a cerveja, perdeu Portugal. Só não perdeu a verdade, nem ao telefone.
Então a vida corre-lhe bem?
Olhe, cheguei em Julho, fizemos jogos particulares e oficiais, campeonato, taça, tudo e mais alguma coisa, e apenas perdi um e empatei outro. Estamos no segundo lugar, há aqui equipas melhores e com outros orçamentos, mas está tudo a correr bem, o que de certa forma ameniza algum desconforto.
Desconforto?
As saudades de casa, das rotinas diárias, da minha vida - não que eu tivesse uma vida muito interessante, que coubesse nas revistas cor-de-rosa -, dos amigos, da gastronomia. Sou bom garfo! De qualquer forma, profissionalmente não tenho grandes saudades de Portugal. O futebol é um reflexo do país e a situação actual entristece-me. Nos últimos anos trabalhei e não me pagavam...
Que encontrou de estranho aí?
As pessoas pensam logo em guerras, tiros, Al-Qaedas mas estou surpreendido pela positiva. O futebol está desenvolvido e organizado, em Portugal há pior. Depois há aquelas coisas... toda a gente pára para rezar umas cinco vezes ao dia e eu respeito; só não rezo porque não posso ajoelhar-me, fui operado duas vezes ao joelho [risos]. Mas a sério, as pessoas são dóceis. Não se vê é uma mulher destapada na rua, o que é uma pena, e depois sinto falta do meu copo de vinho ou da minha cerveja, não há nada disso... mas adiante. Já defini que isto é um ano que não conta, em que não vou envelhecer.
Não bebe? Então deve estar em grande forma. Sempre gostou de treinar e de jogar ao lado das suas equipas...
Sim, estou em forma (risos). Naqueles treinos em que o essencial está feito - as questões tácticas, as instruções fundamentais -, lá estou eu ao lado deles. Só é pena o joelho, a última operação foi em Dezembro e ainda não está bom.
E o futebol? Como é aí?
Temos qualidade técnica, muita, embora os jogadores não sejam muito fortes fisicamente.
Já lhes incutiu o espírito guerreiro à Pacheco? Caneleiras obrigatórias?
Caneleiras desde o primeiro dia! Um jogador não pode passar o treino a pensar que pode magoar-se, portanto é melhor estar protegido. Aqui aceitaram bem as minhas ideias. Tento explicar que é preciso dar tudo, tudo, tudo, porque isso pode ser a diferença entre fazer e não fazer carreira. A verdade é que estamos a meio da primeira volta e temos seis vitórias; no ano passado ganharam dez jogos na época toda.
Quando foi para o estrangeiro pela primeira vez (Maiorca) a coisa não lhe correu tão bem. Porquê?
Fui para o clube errado, na altura com a administração a mudar, circunstâncias difíceis... olhe, é como o Ricardo [ex-Sporting] e o Nélson [ex-Benfica], que tiveram azar e foram para o Bétis [desceram de divisão]. Ou o Simão, que foi para o Atlético de Madrid e agora não ganha.
Em Maiorca também encontrou jogadores que não o aceitaram da mesma forma. O Eto'o foi-se embora de um treino quando lhe pediu que treinasse de calções e não de calças...
É um facto. Mas, sabe, ainda no outro dia o Camacho [ex-treinador do Benfica] dizia que nunca mais treinava o Real Madrid, porque os jogadores são muito protegidos pelos dirigentes e não fazem o que lhes pedem, não trabalham. Depois a culpa das derrotas é sempre dos treinadores, o que é errado. Se assim fosse, se o problema fossem apenas os treinadores, então as equipas também não mudavam de jogadores todos os anos! Quem manda não tem noção disto... costumo dizer que os presidentes é que deviam marcar os penáltis, para perceberem o que custa. Em Portugal estamos assim, não temos qualidade, os jogadores bons estão todos lá fora, depois vêm as chicotadas. Este vai ser o ano das chicotadas em Portugal.
A última foi a de Paulo Bento.
Compreendo as razões da saída. Às vezes cometemos o erro de nos apegarmos ao clube, também aconteceu comigo [no Boavista]. Paulo Bento não devia ter ficado estes últimos quatro meses, ele assumiu-o, mas o coração falou mais alto que a razão. Devia ser mais reconhecido por isso, pelo afecto que demonstrou ao Sporting. Aliás, devo dizer que ele fez um trabalho excepcional com orçamentos baixos, conseguiu ter os jogadores do lado dele, aproveitou a formação...
Percebe-se que o admira.
Gosto de pessoas verticais, correctas, sérias e responsáveis, com aqueles valores humanos que defendo. O Paulo Bento sempre foi assim, como jogador e como treinador. Admiro-o e ele sabe disso.
O futuro do Sporting passou-lhe ao lado?
Não sou daqueles que se oferecem, pegam no telefone e se chegam à frente. Estou no meu cantinho, no meu espaço. Tenho a certeza que quem chegar vai fazer melhor, era impossível não o fazer, de certeza que vai ter condições que o Paulo Bento não teve.Em Portugal, o que se pede (dirigentes, imprensa) é mudança. Se aparece um técnico com um sistema novo chamam-lhe logo inovador, mesmo que aquilo não seja novidade nenhuma. Se for alguém mais velho dizem logo que é o treinador do autocarro.
Falemos do Boavista. Quanto dinheiro é que lá deixou?
Olhe... eu gostava é que o clube estivesse no lugar que merece. Por aquilo de que acusaram o Boavista já muitos clubes teriam também descido de divisão. Aquela casa e aquelas pessoas assustaram muita gente, criaram muitos inimigos porque estiveram no topo do futebol português. São politiquices... sabe como é, quando o Benfica não ganha o jornal "A Bola" não vende. O Boavista e as pessoas que lá passaram, como eu, tornaram-se mártires por aquilo que fizeram.
Por isso não chegou a um grande?
Com respeito por todos, agora pelo Jorge Jesus, fiz mais que todos os treinadores portugueses que chegaram a um grande. Não fui apenas campeão, fui duas vezes segundo classificado no campeonato e o Jesus foi quinto no Braga com uma equipa melhor que aquela que o Domingos tem agora.
Ainda vai ter a sua oportunidade?
Sim, se Deus quiser, mas se não quiser também não há problema, não estou obcecado. O meu azar foi treinar onde não pagavam, também no Belenenses e em Guimarães, foi um bico de obra.
Arrependeu-se de recusar o Benfica?
Não. Eu sou como todos, também preciso de dinheiro, aliás, por alguma razão estou aqui, mas na altura, no ano em que acabámos por ser campeões no Boavista, não podia virar as costas a quem me dava tudo, de jogadores a dirigentes.
Foi campeão como outsider. Diga lá quando é que Domingos e o Braga devem assumir a candidatura ao título.
Lá para o último terço do campeonato.
Só? Ganharam aos três grandes!
Só, só e só. Nós, no Boavista, só o fizemos depois de ser acumulado experiência interna e na Europa, depois de haver discussões acerca do assunto, depois de se perceber a mística daquela casa, depois de se perceber a unidade de um plantel extraordinário. O Braga tem condições para ser campeão, mas é cedo para assumir. É bom que continuem assim. O Domingos deve desejar que os grandes não o levem a sério.
O campeão está mais fraco?
O FC Porto tem de comprar dois jogadores, um que faça de Lucho e outro que seja um grande lateral, um daqueles que quando chegam lá à frente não façam de defesa. Ano após ano, o FC Porto vem perdendo qualidade.
Passemos aos seus tempos de futebolista. Faltou-lhe jogar no Benfica?
Podia ter jogado lá, o Toni convidou-me no Algarve, mas sou uma pessoa com hábitos, costumes e palavra de honra. Sou imaculado nesse aspecto, e já tinha dado a palavra ao FC Porto.
Mas acabou realizado?
Eu fiz tudo, comecei a carreira no Rebordosa com 16 ou 17 anos e quatro anos depois estava no FC Porto. Tive uma ascensão meteórica, até como treinador, porque fui campeão seis anos depois de começar. Como jogador fui dos distritais a campeão do mundo (Taça Intercontinental), não lamento nada, estive ao lado de Chalana, Jordão, Madjer, Futre e Gomes...
Quem era o maior?
Era o [António] Oliveira, só que o talento nem sempre é rendimento. Ainda joguei com o Bento, meia leca de gente mas grande guarda-redes. Que Deus o tenha. Tive mesmo sorte!
Só teve azar na selecção. Fez parte daquele grupo de Saltillo.
Nããã, não! Nós fomos dos primeiros, depois da geração de Eusébio, a conseguir alguma coisa, a ir a um Mundial. Essa história no México anda mal contada e o que acontece é que o português é mesmo muito invejoso. Na altura, as nossas reivindicações não eram mais do que trabalhar em benefício das gerações seguintes. Treinámos mês e meio, em Portugal e no México (em altitude), e não ganhámos nada. Sentíamo-nos carne para canhão. Quando ganhámos à Inglaterra tínhamos a parede forrada de faxes a dar-nos os parabéns, depois perdemos com Marrocos e parece que nos queriam matar. Fomos vítimas da desorganização da FPF. Os ingleses andavam na piscina e nós a trabalhar.
Antes do México 86, no Europeu de França, teve quatro seleccionadores...
Pois... mas aí, como ficámos em terceiro, nunca ninguém nos apontou nada! Se quer que lhe diga, nessa altura fomos bem piores em termos de indisciplina. O sr. Amândio de Carvalho, que ainda hoje está na federação, prometeu-nos em França um cartão vitalício, que nos havia de permitir entrar em qualquer campo para assistir a um jogo. Nem isso cumpriu. No México, supostamente tínhamos direito às camisolas de jogo. Nem isso. Fiquei com a do último jogo e entreguei-a em Fátima como promessa.
Porquê?
Vim com saúde. Isso é tudo.
É muito religioso?
Quanto baste, vou à igreja quando me apetece mas o que me interessa é fazer bem ao próximo, ser boa pessoa. Se não... fica-se como os outros e não se liga a ninguém. Depois desculpam-se: quando é rico é personalidade, quando é pobre é feitio. Só tenho um defeito, gosto de ganhar, mas não me meto com ninguém por causa disso.
José Mourinho não diria isso, diria que você se meteu com ele quando lhe chamou "doente mental".
Não gosto de falar dele, como gente não presta. Nunca me meti com ele nem acho que deva falar dele. O que me interessa é o que sou, fui campeão do mundo pelo meu trabalho, não devo nada a ninguém. De resto, o meu único desejo é que o salário mínimo dos portugueses triplique e todos sejam felizes. Não sei se vou dar um ou dois apartamentos aos meus filhos, mas quando morrer ao menos que se lembrem que eu dizia sempre a verdade. Sempre fui assim, se não como é que podia pedir o que peço aos meus jogadores, em termos de empenho, entrega e atitude? Não me ligavam nenhuma!
Foi esse o segredo no Boavista?
Para estar a mentir não falava: o segredo foi a equipa. Quem era o melhor? Se não era o Petit, era o Silva, se não era o Ricardo era o Martelinho ou o Jorge Couto. Recuperámos alguns jogadores e lançamos outros, depois todos fizeram carreira. Até o Rui Bento, a quem chamavam o "pequeno Baresi" no Benfica, onde o Eriksson o lançou a central: comigo passou para o meio campo e ainda chegou ao Sporting e à selecção. Está visto que não podia ser central.
Quem foi o treinador que o marcou?
Ahhhhh... (silêncio solene). O sr. Pedroto foi melhor que todos juntos, e digo isto apesar de ser aquele que mais vezes me deixou de fora.
Porquê? Concorrência ou castigo?
Concorrência! Nenhum treinador podia dizer nada de mim, eu gostava de trabalhar, tinha vergonha se algum deles me pedisse que corresse mais, ou fizesse qualquer coisa melhor. As pessoas têm de trabalhar, mas em Portugal ainda não se convenceram disso.
Não diga que nunca meteu a pata na poça.
Não, não e não! Nada! Se assim fosse não podia falar como falo e pedir o que peço.
Mas nem um copo num estágio?
Ah, isso é diferente! Na minha altura podia-se beber nos estágios, era autorizado, não é como agora. Eram outros tempos, tinha colegas que fumavam ao intervalo e davam tudo no relvado; tive outros que bebiam água e leitinho e não se mexiam lá dentro. Mas a mim não me podem apontar nada, jamais. E olhe que eu digo a verdade. Como costumo dizer, só minto à minha mulher! A mais ninguém!
Fonte: I
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