sábado, 21 de novembro de 2009

Maniche: "Disse na cara de Carlos Queiroz que tenho lugar na selecção"

"Se é para ficar no banco, não quero ser chamado." Foi na Hungria que acabou o percurso do médio. A entrevista do adeus



A carreira está quase feita. Na selecção, acabou. Maniche passeia agora o nome enquanto lhe apetece jogar futebol. Recebe a reportagem do i no centro de estágio do Colónia, deixa-se fotografar no bosque onde os alemães fazem jogging e não lhe ligam nenhuma. É essa calma que procura, depois de uma viagem turbulenta, especialmente nas passagens pelo Benfica, pela Rússia ou por Madrid.

Agora a Alemanha porquê?

Viajei muito, passei por muitos clubes, este é o país que faltava e ainda não me desiludiu. Vou conhecendo mais do clube e da cidade, está tudo a correr bem, a mim e à equipa.

Ainda há uns anos, o Colónia estava na segunda divisão. Querem ficar do meio da tabela para cima?

Ficar entre os oito primeiros era muito bom. Temos qualidade para isso.

Mas jogou no Chelsea, no Inter... o que aprende aqui?

A disciplina. Os alemães são muito rigorosos e disciplinados. Quando se marca uma hora, é a hora de lá estar. Em Portugal, Espanha e Itália, podemos pôr uma música até às 11 da noite, mas aqui já é mais complicado; nessa altura já é para estar a dormir. As minhas filhas levantam-se às 7h30, entram às 8 em ponto e na escola não há relógios, toques, nada a não ser a responsabilidade.

E no futebol?

Quando se está habituado a jogar nos melhores clubes do mundo, tudo parece estranho. Não tinha noção da dimensão do clube, mas há excelentes condições de trabalho e o estádio está sempre cheio com 54 mil pessoas.

É verdade que é obrigado a tratar das botas?

Não [risos], eu tenho sorte, há quem trate. Os miúdos fazem isso. Aqui têm essa humildade, passam isso aos jovens. Levam os coletes e as bolas para o campo e nós, os que temos mais estatuto e nome, obviamente não nos preocupamos com isso. Já foi tempo - quando eu estava no Benfica, limpava as minhas botas, nos juvenis e nos juniores.

Tem estatuto, mas também tem uma responsabilidade maior.

Sim, por aquilo que ganhei, tenho uma palavra a dizer. Estes miúdos viram-me a jogar um Mundial e um Europeu em que as coisas me correram bem. Para eles, treinar ao nosso lado [refere-se a Petit, colega] é uma novidade. Falo com eles, tento colocá-los numa situação de igualdade e digo-lhes que se trabalharem também chegarão ao topo. Há uns que são humildes, outros não e aí não vale a pena falar porque entra por um ouvido e sai pelo outro.

Este é o contrato de fim de carreira?

Não. Tenho uma vantagem - fui eu que escolhi este clube, vim porque quis. Não é pelo dinheiro que estou aqui, apesar de o contrato ser idêntico ao que tinha em Espanha. É uma questão de estar contente comigo e viver num clube tranquilo onde tenho condições de trabalho e a minha cabeça não está stressada. Tenho consciência de que o futebol não vai durar sempre e agora o que quero é tranquilidade. Viajei muito, passei muita coisa na minha carreira...

O Benfica foi o início da viagem.

Foram nove anos, aos 16 estava a treinar no plantel profissional. Apanhei o Caniggia e o Ricardo Gomes [risos].

Risos porquê?

São ídolos, queria jogar ao lado deles, vê-los. Tinha curiosidade só de olhar para o Caniggia. Era amigo do Maradona, amigo do meu ídolo! Só de estar ao lado dele sentia-me feliz. Num estágio, fui colega de quarto do Ricardo! E o Valdo? Gostava muito dele, falava muito comigo.

Dizia-lhe o quê?

Que eu tinha qualidade, para não a desperdiçar e para ser humilde. Para esperar porque, com o tempo, a qualidade vinha ao de cima - naquela altura tinha de esperar bastante porque havia muita gente boa na minha posição, o Valdo, o Paulo Bento... Depois fui emprestado ao Alverca, três anos, subimos à primeira divisão (um feito histórico naquele clube) e regressei ao clube por intermédio do Jupp Heynckes, a quem devo muito. Foi ele que me colocou a jogar na linha. Fui melhor marcador do Benfica, depois do Nuno Gomes, a jogar a médio direito e a médio esquerdo.

Falou com o Jupp Heynckes desde que regressou à Alemanha?

Jogámos contra o Bayer Leverkusen [derrota 1-0], fui ter com ele ao banco, estivemos à conversa e ele disse-me: "Agora que és bom jogador é que és meu adversário?" O Bayer está bem, é líder.

Mas no Benfica acabou por ter aquela saída conflituosa. Porquê?

Não cheguei a entendimento para a renovação do contrato. Tinha de mudar de empresário para renovar, toda a gente sabe. Fui para o FC Porto, acabei por ir para o sítio certo na altura certa. No fundo, se calhar hoje agradeço ao Benfica essa saída. Atenção, digo isto porque não foi por mim que não fiquei. Mas tinha de trocar de empresário.

Mourinho convenceu-o facilmente a ir para o Porto?

Eu já estava a treinar à parte, andava lá a correr às voltas. Depois o Sindicato dos Jogadores lembrou ao Benfica que isso era ilegal e fui para a equipa B, treinada pelo Veloso. O FC Porto queria fazer uma equipa com gente nova que tivesse ambição. Mourinho teve essa visão, foi buscar-me a mim e a outros.

O que lhe disse Mourinho?

"Nem preciso de falar contigo, basta olhar. Sei o que és, agora é só colocar isso dentro do campo." Foram as palavras dele.

José Mourinho é o pai da sua carreira?

Sim, foi com ele que conquistei os títulos mais importantes e o reconhecimento internacional. No FC Porto reencontrámo-nos. Ele já me conhecia, temos uma personalidade idêntica, somos frontais e directos, dizemos o que queremos e pensamos, apesar dos anticorpos que podemos criar. Mourinho deu-me o privilégio de jogar num dos melhores clubes do mundo, de ganhar. Se não fosse isso, se calhar não estava aqui a dar esta entrevista.

Gostava de ter vivido no Benfica o que viveu no FC Porto?

Não me passava pela cabeça jogar no Porto. Quando se cresce num clube desde os nove anos, um clube onde apostaram em mim e me deram carinho - lembro-me que me tiraram do bairro onde vivia, o Nené e o Porfírio Alves, e me meteram numa casa para eu não me desencaminhar para outras vidas. Hoje não fumo nem bebo - obviamente não esperava nem merecia o que me fizeram. Não sei se o Benfica poderia alcançar o mesmo, mas claro que sonhava com isso. Depois, no FC Porto, com tudo o que aconteceu, ganhei mais carinho por aquele clube, apesar de lá ter estado menos tempo.

O Benfica marcou-o. Ainda há pouco tempo dizia que o seu irmão, Jorge Ribeiro, jogava num clube que o tratou mal. A si.

Senti-me um filho da casa que não foi valorizado. E, ao fim e ao cabo, não foi só comigo. No Benfica temos exemplos que chegam e são mal tratados. O Benfica não sabe apostar na formação.

O seu irmão - Jorge Ribeiro - foi reintegrado mas ainda há pouco tempo estava a treinar à parte porque não encontrou colocação.

Não compreendo. Um director desportivo vai buscar o meu irmão (quando o contrataram ao Boavista, o Rui Costa já lá estava), o treinador não o quer (isso é compreensível, não é obrigado) mas obviamente deve haver respeito. Há valores acima disso tudo! O meu irmão custou zero ao Benfica e deviam ter mais consideração. Fala-se muito do FC Porto, mas no fim o Benfica faz pior.

Depois de ganhar tudo no FC Porto, foi para Moscovo.

Não foi bem pensado. Foi um contrato muito bom, foi a partir daí que encaminhei a minha vida e se o futebol acabasse hoje estava tranquilo. Contudo, na altura, havia alternativas que deviam ter sido exploradas. Nestas coisas do futebol há sempre interesses e por vezes só mais tarde é que se percebem algumas coisas. Se fosse agora... dou um exemplo, antes de vir para aqui podia ter ido para a Turquia, se calhar ganhar um dos melhores salários que já tive, mas não fui porque já tive essa experiência. Depois, estava na Turquia e ao fim de dois ou três meses queria vir embora. A Rússia... era tudo muito bonito, o projecto, tudo, mas quando se vai de um clube como o FC Porto, a mudança é drástica.

E foi emprestado para o Chelsea. Ficou desiludido com o facto de Mourinho não exercer o direito de opção?

Não, não lhe guardei rancor, compreendi a situação. Muita gente desconhece, mas fui para o Chelsea em condições especiais. Em primeiro lugar, porque estava farto de Moscovo, estava descontente, e disse-lhes: "Ou me deixam sair, ou acabo a minha carreira." E ainda tinha mais cinco anos de contrato [gargalhada]. Tinha de sair dali, não aguentava mais. Era Novembro, o campeonato estava parado, tinha uma lesão e precisava de ser operado. Depois falei com Scolari [então o seleccionador] para me aconselhar, porque precisava de perceber como seria melhor por causa do Mundial-2006. Ele disse-me para avançar com a operação, que não havia problema, que me levaria ao mundial de qualquer forma. Só era preciso um clube para fazer a recuperação e começar a jogar. Era o Chelsea. Por acaso, a recuperação até correu mal. Mourinho acabou por me fazer um favor. Ele precisava de um jogador para o lugar do Essien, que tinha ido para a Taça das Nações Africanas e eu nem consegui ajudar muito. Se calhar, se tivesse ido para o Chelsea quando foram o Tiago, o Paulo Ferreira e o Ricardo Carvalho, ainda lá estava até agora.

Voltou ao Dínamo e conseguiu transferir-se para o Atlético de Madrid.

Depois o Mundial correu-me bem. Apareceram interessados e para onde é que eu vou? Atlético Madrid! [gargalhada].

Então?

É sempre assim. Com tantos interessados, vou para o Atlético, tudo bem, um grande de Espanha, mais não sei quê... joguei sempre, fomos à Liga dos Campeões, mas depois tive aquele desentendimento com o treinador.

Javier Aguirre pensou que você simulou uma lesão para não ir a um jogo da Taça do Rei, contra uma equipa da segunda divisão.

Toda a gente desconfiou da minha lesão.

Ele também.

[não percebe a questão] Você também? [mais uma gargalhada] É normal!

Não, eu não. Ele, o treinador!

Ele desconfiou mais que todos! Mandou-me fazer um exame, confirmou a lesão, mas o médico não falou com ele a tempo de me convocar. Ele não sabia o que se passava, não acreditou, mandou-me fazer um segundo exame, não se convenceu e desconfiou da minha palavra. Depois do jogo, disse-me que estava farto de mim e que não me queria ali. E eu disse-lhe coisas que não devia ter dito...

O quê?

Que era fraco, que era má pessoa e muito fraquinho como treinador. Depois tive de ir para o Inter. O presidente [Moratti] sempre me quis lá. Aliás, logo na altura em que fui para o Atlético Madrid, mas nessa altura não tinha conseguido chegar a acordo com os russos. Fui para a Rússia por 22 milhões de euros e acho que depois pediram 16 para eu sair.

De qualquer forma, em Itália também durou apenas seis meses.

Pois, mais tarde vim a saber que o treinador [Mancini] não me queria, a primeira opção era outro jogador. O Inter, o Inter... ouvi o nome e fui logo para o Inter, mas joguei pouco. Depois o Mancini pediu-me desculpa e disse-me que errou comigo. As pessoas não têm ideia, mas quando sabes que te querem e que és a primeira opção, isso faz toda a diferença. Não foi o caso. Trabalhava mais do que os outros e não jogava.

No Inter, o balneário tinha grandes nomes. Impressionava-o?

Olhava para um lado, via o Figo, olhava para o outro, via o Ibrahimovic, olhava em frente e via o Zanetti e o Vieira. No Chelsea era a mesma coisa! Mas tudo isso foi um privilégio, foi currículo. Um dia posso dizer aos filhos: "Olha, o pai ganhou isto, equipou-se ao lado daquele." Ou então posso dizer: "Olha, o pai errou ali. Se não tivesse dito aquilo, ainda lá estava." O mais importante é andar na rua de cabeça levantada, sem ninguém dizer que és falso ou hipócrita. Hoje, olho para trás e os meus arrependimentos são mínimos porque o futebol me deu tantas coisas boas que esqueço uma ou outra situação negativa. Se calhar, o que mais me prejudicou foi ser verdadeiro.

Em que relações se sentiu prejudicado?

No futebol não se pode expressar sentimentos, não se podes dizer tudo o que se pensa porque depois se acaba prejudicado por alguém. Não se pode dizer que se merece jogar porque o treinador leva a mal. Não se pode dizer que se tem lugar numa selecção porque depois nos acusam de falta de humildade. Ou se guarda o pensamento ou se é politicamente correcto. Mas não me queixo. Apesar de tudo, construí uma vida óptima.

Falou em selecção. Ainda é jogador de selecção?

Não. Não penso na selecção. Com toda a franqueza, não penso mais. Tenho orgulho em dizer aos meus amigos que Portugal vai estar no Mundial, tenho orgulho em ser português mas...

Isso é uma novidade. Está a dizer adeus à selecção?

É novidade para vocês mas já o disse ao seleccionador. Manifestei-lhe a minha indignação e insatisfação com o que estava a acontecer. Sabia que tinha lugar. Não gosto de ficar no banco ou de fora, isso não é para mim, não apenas pelo passado mas pelo valor que sei que ainda tenho. Disse isso na cara da pessoa.

Quando é teve essa conversa com Carlos Queiroz?

Foi na Hungria [jogo a 9 de Setembro, para o qual foi convocado mas ficou na bancada]. Disse-lhe na cara o que senti, que daquela forma o melhor era não me convocar mais. Só para fazer número? Sempre me habituei a fazer parte da selecção e da solução.

Em Fevereiro percebeu-se que estava preocupado com a campanha, acusou jogadores de não se empenharem.

Isso foi depois do jogo com o Brasil [derrota 6-2 no particular em Brasília].

Viveu o tempo de Scolari e do Queiroz. A identificação entre jogadores e treinador é comparável?

As mudanças têm de existir. Isso é normal e as coisas são sempre diferentes. Atenção, não acho que o meu lugar deve estar reservado apenas porque estive bem no Euro-2004 e no Mundial-2006. Nada disso, o passado vive nos museus. Mas agora, nesta campanha, vi convocatórias que não existem, que é para não dizer outra coisa. Mas não vale a pena pensar nisso. De certeza que quem está na selecção merece a confiança do seleccionador. O que interessa é o que sinto e isso foi expresso na cara dele.

Uma vez disse: "Sou um jogador de grandes golos."

Quando se está confiante e as coisas correm bem, até se pode chutar de baliza a baliza. No Euro-2004, contra a Holanda, queria fazer aquele golo [remate cruzado, fora da área]. Mas às vezes sai de uma forma... e fica-se a pensar: "Mas eu fiz mesmo aquilo?" Se calhar foi da bola, aquela bola dava muitas curvas, ainda bem que deu aquela [risos].

Foi o golo da sua vida?

Sim, um dos melhores e dos mais importantes. Também fiz dois golos ao Braga, pelo FC Porto, muito bons. Outro à Holanda, no Mundial. Marquei um na Rússia muito bom, foi o único.

O único? Só um golo na Rússia?

Só! Não estive lá muito tempo! Estava à espera de cinco anos [continua a rir].

Que vida era aquela em Moscovo? Passou uma reportagem na SIC. Tinha uma casa que parecia um castelo!

Íamos aos restaurantes e tínhamos de dar uma comissão de dez por cento aos empregados. Era incrível, treinávamos de manhã e de tarde íamos para o centro. Só que no caminho demorávamos duas horas! O trânsito era infernal! Depois estávamos por ali, jantava-se e ficávamos pelo restaurante porque os restaurantes tinham bar. De resto, era compras, estar em casa, andar com a malta.

Havia muita vodca e pouca cerveja?

[não responde, apenas sorri] Aquilo é de mais. É bom para ir quatro ou cinco dias de férias. É bonito, uma cultura diferente. As pessoas são muito desconfiadas, talvez pelo passado. Faz muito frio, mas saquei muita coisa boa.

Ainda vai jogar no Sporting?

Não quero arrastar-me nos relvados, não quero chegar a Portugal e que me chamem chulo ou digam que estou velho. Em Portugal acha-se que aos trinta anos estamos velhos para jogar futebol. O Sporting é o clube do meu coração, o meu pai fez-me sócio logo de pequenino, tenho carinho mas não está nos meus planos jogar lá.

Se cumprir o contrato com o Colónia (dois anos), fica tarde?

Não, não... não quero acabar em Portugal. Mesmo antes de vir para aqui coloquei a hipótese de acabar a carreira. Acabei por assinar por dois anos . Depois logo se vê. Enquanto tiver vontade de me levantar cedo e vir para o treino, o que já é um bocado difícil, ainda continuo. Mas estou preparado para terminar.

Fonte: I

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