sábado, 23 de outubro de 2010

José Eduardo Bettencourt em entrevista: «Sporting foi sempre um projecto atormentado»


O presidente do Sporting conduz os leitores (...) numa viagem guiada ao interior do clube. As respostas pragmáticas e lúcidas que dá são temperadas por uma paixão sem limites pelo emblema que desde sempre abraçou. Um depoimento que continuará na edição de amanhã, dia em que Bettencourt celebra 50 anos.

- Disse, durante a campanha eleitoral, que este era o desafio da sua vida. Catorze meses depois continua com a mesma ideia?

- Tenho essa consciência. Para se ganhar na vida são precisas condições e eu sabia que as condições de que disporia seriam menores relativamente às da concorrência. Sei que corro riscos, que serei julgado pelos resultados e nada mais; e sei ainda que o desafio que aceitei é muito, muito difícil. Mas também sei que há coisas que estão a ser feitas e que, se as quiserem aproveitar mais tarde, serão muito importantes.

- Conhecia os riscos que ia correr?

- Como no Sporting, por norma, não há milagres, sabia que o risco era brutal e disse-o em casa. Hoje estou à vontade para dizer que disse à minha família: a probabilidade de espetanço é de 90 por cento. E espetando-me no Sporting a 90 por cento estou morto para o resto da carreira. Mas quando percebi que ninguém queria o lugar - porque aquilo a que assisti foi a desculpas esfarrapadas - era preciso alguém que assegurasse a parte do bater no fundo para depois vir um verdadeiro Messias.

- Tem havido bastante turbulência à volta do clube, o que não ajuda...

- O clima criado em torno do Sporting transmite-se a todo o lado. Se um jogador entrar em campo a pensar que o presidente viu «um cartão amarelo» e se calhar no dia seguinte não estará cá para pagar o salário, está criado um cenário de perturbação. Tive uma expressão infeliz, aquela do terrorismo, e já pedi desculpa. Mas ninguém comenta a forma baixa e ordinária como tenho sido tratado por algumas pessoas.

- Estava habituado a ser elogiado. Desde que chegou à presidência do Sporting, tem sido alvo de inúmeros ataques. Como convive com isso?

- A vida é assim. Levo muito na cabeça mas há problemas mais graves. A fome e o desemprego são muito mais graves do que isso tudo... É isso que digo aos meus filhos: durmam descansados, façam o melhor que sabem e sujeitem-se à crítica ou ao elogio.

- Não é utópico querer ganhar quando os concorrentes directos têm orçamentos três vezes superiores?

- É o que as pessoas exigem.

- Insistimos: não é utopia?
- Utilizei uma expressão quando isso me foi perguntado na apresentação de Paulo Sérgio: temos obrigação de andar lá em cima. Claramente, temos de ficar 15 pontos à frente do Sp. Braga. Indiscutivelmente. Ainda para cima acho que não estamos no topo da tabela por um conjunto de circunstâncias e coisas

- Está arrependido do rumo que escolheu?

- O Sporting tinha de passar pela fusão da tecnocracia com a emoção, com os valores do Sporting, com a cultura do Sporting. É facílimo perceber que o Sporting criou, nestes últimos anos, algumas expectativas, mas foi sempre um projecto atormentado. Não podemos ignorar que houve divergências, saídas e entradas, e muito pouco entendimento, por vezes, sobre questões básicas.

Há cinco por cento de mafiosos no futebol português

- Admite que os adeptos possam não ter visto em si aquilo que desejariam como imagem do poder?

- Acho que têm razão, porque sempre muito humildemente disse que podia não ter perfil para isto. Mas também sabia que isso não era decisivo, porque no passado houve uns com mais e outros com menos perfil e isso não fez diferença nenhuma.

- Tem agora a ideia de que o futebol visto por dentro é bastante mais complexo do que aquilo que as pessoas possam pensar?

- É. Para já, a grande diferença é o mediatismo, que atrapalha muito. E vou dar um exemplo: não estou satisfeito com este colaborador e vai sair desta posição e vai para aquela. O assunto morre ali. Basta uma pessoa trabalhar na esfera do futebol e a probabilidade dessa pessoa falar com dez jornalistas é grande. Ainda para mais numa casa com a tradição de várias correntes, várias ondas, etc..
Depois, há componentes muito mafiosas, muito complexas. É fácil dizer que se podia ter sido feito assim ou assado, mas os agentes de jogadores, o facto de o mercado ter só dois momentos e de haver uma complexidade regulamentar e desportiva própria, tornam tudo complicado. Mas também tem coisas fascinantes e pessoas do melhor que há.

- Qual é hoje a sua visão concreta do futebol português? É a que esperava ou vai além daquilo que era a sua imaginação?

- No lado mais racional, penso que, hoje em dia, o futebol português tem um défice de coragem. Um país como Portugal não pode gastar o que gasta no futebol. Obviamente pode haver modelos de mais ou menos sucesso, mas todos os modelos são de alto risco. Penso que, se calhar, vamos ser obrigados a esse esforço mais cedo ou mais tarde. Obviamente que se a concorrência acelera muito, se não aceleramos ficamos para trás e isso pode ter várias implicações. Quanto ao resto, sinto que há um futebol que tem 95 por cento de pessoas extraordinárias. Depois acho que há uma componente de país pequeno terrível, muito baixa. Há cinco por cento de mafiosos!

- O Sporting não beneficia do ódio enorme entre as lideranças de Benfica e FC Porto?

- Temos tentado contribuir para o sucesso da indústria do futebol. Temos divergências e já engoli sapos. Mas para mim o backstage não é importante, a imagem que deve passar para a opinião pública é a das coisas boas.

Fonte: A Bola

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