terça-feira, 13 de outubro de 2009

«Futebol português cheira a barril de pólvora» - José Eduardo Bettencourt

O primeiro grande teste a Bettencourt está marcado para hoje, em Assembleia Geral. O presidente dos leões diz que a aprovação da passagem da Comércio e Serviços para a SAD é essencial para a reestruturação financeira, de modo a distância orçamental para os directos concorrentes diminua, pois, de momento, Benfica e FC Porto gastam o dobro dos leões.

- Disse recentemente que a Assembleia Geral (AG) de hoje é essencial para o clube. Até que ponto vai a importância desta reunião?

- O atraso na não aprovação deste projecto penalizou-nos fortemente, pois não é fácil atacar seja que objectivo for perante num cenário em que não estão reunidas condições mínimas para o fazer. Acaba por ser um trabalho à vista, em vez de ser um trabalho com mais profundidade. Daí a importância desta AG, independentemente do facto de haver questões que até já estão aprovadas. Quando os direitos televisivos passaram da SAD para a Comércio e Serviços concordei a 300 por cento com esta medida, porque havia a questão dos capitais próprios negativos, pois, ainda por cima, como somos um clube formador, o valor contabilístico dos atletas das camadas jovens é... zero. Na altura essa operação foi fundamental, mas acontece que aquilo que acontece hoje é que temos de inverter este estado de coisas, actualizando em função das necessidades e do momento. E porquê? Porque, de facto, a SAD viu-se privada de uma receita importante que são os direitos televisivos, acontecendo, inclusivamente, que parte desse dinheiro está a ser canalizado para a banca e as sucessivas reestruturações tiveram em linha de conta a necessidade de pagar um determinado passivo, quando neste negócio, independentemente de vendas muito bem sucedidas como é o caso do FC Porto, toda a gente tem perdido dinheiro. Pode-se ir pela razão, pela emoção, por onde se queira, mas como se tem verificado nos últimos anos, tem sido um negócio onde todos perdem.

- Todos os clubes?

- Todos. Os bancos também não têm ganho muito com isto e até têm necessidade de arranjar esquemas para serem ressarcidos daquilo que têm emprestado, porque o negócio em si não liberta meios e, na generalidade dos casos, tem-se assistido à degradação das contas. E isto é tão pior quanto há menos receitas para todos, ou seja, quando tínhamos três clubes na Liga dos Campeões era uma realidade, com dois é outra. No caso do Sporting, por exemplo, não podemos subestimar que estivemos três anos na Liga dos Campeões, o que nos permitiu ir buscar mais 10 milhões por ano e este valor é superior à quotização ou, até, aos direitos televisivos. Portanto, a questão da reestruturação é fundamentalmente duas coisas: não termos um encargo tão pesado com aquilo que tem de se pagar aos bancos quer de juros, quer de capital, assegurando, por sua vez, condições mínimas para que se consiga uma maioria na SAD e, sobretudo, uma coisa que o dr. Dias da Cunha referiu várias vezes e que deu um óptimo contibuto: é que em caso de uma mais-valia extraordinária da SAD isso não devia ser um benefício só da SAD mas também do clube. O Sporting-clube tem hoje, directa e indirectamente, cerca de 70 por cento da SAD. Ou seja, a sociedade desportiva é muitas vezes vista como um corpo estranho ou há uma interpretação um bocadinho maniqueísta, porque uns querem tudo para a bola, outros querem tudo para o clube como se fossem realidades completamente dissociadas. É conhecida na nossa história uma quase permanente conflitualidade entre a gestão da SAD e do clube, algo que não acontece nos nossos principais rivais. Uns por uma questão de cultura de clube já muito arreigada, outros por necessidade de recuperar algum tempo perdido criaram esta cultura mais tarde mas também com alguma fortaleza. No fundo, o Sporting tem 31 milhões de euros de orçamento, depois esta divisão pode ser feita como se quiser. Pode dar-se mais às amadoras e menos ao futebol, mais ao futebol menos às amadoras...

- Mas é curioso que o clube tem tido vários presidentes mas a SAD mantém a sua estrutura quase desde o início. Estará o problema no clube e não na SAD?

- Não. Quando se vive em guerra isso desgasta muito e o que não há duvida é que não tem sido possível por ene razões, entre as quais essa instabilidade até nas próprias lideranças e o espírito bastante desavindo com que o clube se manifesta. Isso, obviamente, não ajuda a um trabalho tranquilo, mesmo internamente. Uns acham que têm meios, outros acham que não têm meios, o que não há duvida nenhuma é que nos últimos anos assistiu-se a um agravamento muito significativo nas nossas condições de concorrência, pois quando fomos campeões pela última vez gastávamos o mesmo do que os outros e hoje gastamos metade.

- São os outros que gastam mais ou é o Sporting que gasta menos?

- Nós gastamos menos do que em 2002 e os outros investem e gastam muito mais. Mas este modelo é um bocadinho de estar no meio, não é carne nem peixe. Ou seja, temos um orçamento que para ficar em terceiro é caro mas para ficar em primeiro é muito barato. Os nossos concorrentes a seguir têm um orçamento de 7 milhões, e depois entre os 20 e os 40 há uma grande distância. Obviamente, isto não é nenhum desculpa nem desresponsabilização, porque isso obriga a trabalhar melhor, mas põe mais pressão em todo o lado e penso até que se trabalhou mal a questão do segundo lugar porque era difícil ficar quatro anos seguidos à frente do Benfica, tendo em conta os níveis de investimento e orçamento.
Muito afastados da concorrência

- Porque não baixou a expectativa para esta época? Esta continuou muito alta...

- Isso talvez seja uma das razões do problema de hoje. Toda a gente sentiu muito a pressão e a necessidade de fazer um brilharete mas talvez também não se contasse muito com o pé no acelerador de alguns concorrentes. Isso, indiscutivelmente, aumentou os níveis de pressão interna, com jogadores e equipa técnica a sentirem que não podem falhar. A autoexigência, o brio e a responsabilidade são grandes. Mas também não faz sentido dizer que não se tem condições nenhumas... a conversa não poderia ir por aí. Temos de assumir as responsabilidades e ir à luta. Mas também há o facto de alguns jogadores já não serem vistos como jovenzinhos. Há uma cobrança como se estivesse em fim de linha e outra de está a entrar ou a adaptar-se. Mas obviamente, a realidade dos factos diz-nos que nunca estivemos tão afastados dos nossos concorrentes.

- O Sporting tem os seus direitos televisivos alienados até quando?

- 2012/2013.

- É um mau acto de gestão ter empenhado os direitos televisivos até tão tarde?

- Mas aí estamos iguais a quaisquer outros.

- Mas os outros também têm problemas...

- Há uma expectativa que esses direitos se possam valorizar, mas os contratos estão assinados, são para respeitar e não há problema, porque na altura ninguém assinou os contratos com uma pistola apontada à cabeça.

- Mas foi um acto de gestão menos conseguido?

- Não creio, porque na altura não houve qualquer concorrente a oferecer nem mais um tostão. É preciso recordar que quando se renovaram os direitos televisivos já se dizia isso mas não é por acaso que todos os clubes negociaram os direitos com quem negociaram [Olivedesportos].

- Qual o valor dos direitos televisivos que vão passar para a SAD?

- Cerca de 8 milhões de euros.

- Consegue quantificar o que pode significar esta aprovação? Quanto é que pode descer o passivo?

- Pode ser abatido em 55 milhões, o valor das VMOC's.

- Aqueles 31 milhões de que falava há bocado podem aumentar? Com quanto o clube pode passar a viver?

- Essas contas ainda não estão feitas, porque não vou fazer esse tipo de demagogia. Há uma coisa que normalmente não faço, que é mentir. Prefiro não falar em pavilhão e fazer o pavilhão e não dizer uma série de coisas e depois fazê-las. Só depois disto feito é que o novo plano terá de ser anunciado e ser vivificado mas por isso é que digo que isto é muito importante como condição necessária. Mas não vou fazer uma espécie de chantagem emocional com as pessoas, embora estas devam ter a noção de que isto é muito importante.

«Temos de ter mais cautelas»

- Há pouco falou de uma espécie de opção programática, que o Sporting está muito longe dos que gastam 7 mas também dos que gastam 40. Defende uma aproximação aos 40?

- Não temos a mínima hipótese de nos aproximarmos dos 40 milhões de euros, porque não vamos fazer uma coisa para derreter num ano aquilo que estamos a fazer agora.

- Mas mantém-se a contradição, porque o Sporting continuará a gastar de mais para o 3.º lugar e de menos para o 1.º...

- Mas uma coisa é um cheirinho, outra é passar de 20 para 40. Isso é absurdo. Pensem numa coisa: o Sporting em 2000 tinha um total de receitas de 25 milhões e gastava mais do que isso. Hoje tem 60 milhões, pode gastar mais, mas por uma questão de sobrevivência, não pode afectar mais. A não ser que se entre num modelo suicida e aí, se as coisas corressem mal, nem sei se teríamos as mesmas condições políticas e económicas para sermos apoiados. Portanto, temos de ter mais cautelas.

- Esse cheirinho será suficiente para anular essa contradição e ter outras condições para lutar pelo primeiro lugar?

- É o que é possível e às vezes pode chegar. Tenho esperança que os outros venham para baixo, também. Por aquilo que vejo na UEFA e em outras Ligas, há uma preocupação de contenção que não havia há 10 anos. Hoje vejo ligas europeias extremamente preocupadas com os seus clubes e mesmo em Inglaterra clubes vendedores como Liverpool ou o Arsenal também não compraram praticamente ninguém. E o que se pensa hoje no mundo do futebol é que não se pode viver só com xeiques... Que é outra preocupação, como se limita os xeiques. Todos hoje perdem dinheiro continuadamente excepto naqueles sítios em que no final do ano alguém mete lá o caroço... e aqui, honra seja feita ao futebol português, acho que todos fazemos milagres. Às vezes quando concorremos com o A ou com B parece que somos todos maus, mas acho que somos todos bons, porque quando se vê nalguns clubes importantes a forma como se trabalha e o dinheiro que se gasta, se vê estruturas poucas organizadas e profissionais, fica-se um bocadinho com inveja dos livros de cheques deles e os portugueses nesse aspecto são todos muito bons. Nas competições europeias, era um escândalo o Sporting perder com o Basileia, que por acaso agora só ganhou ao Liverpool, mas não passa pela cabeça perder com o Basileia. Porquê? Gastam mais do que nós.... A Fiorentina tem 35 milhões de direitos televisivos e vive a chorar que a Juventus tem 90 e nós achamos que temos obrigação. O futebol português tem vivido muito acima daquilo que é o seu gasto e acho que muitas vezes sobressaem mais as guerras internas, mas penso que os vossos leitores percebam que o futebol português tem sido das áreas mais competitivas do nosso país.

- Há uma questão de que se tem falado muito que é a introdução de um tecto salarial. É favorável a essa medida?

- Nunca vai funcionar, agora o que pode funcionar é limitar despesa, haver alguns critérios que sejam acompanhados porque a mera questão de um orçamento nada resolve.

- Mas estou a falar num tecto salarial...

- Acredito que não funcione por tecto mas por limite máximo de gasto. Essa pode ser uma limitação, como pode ser o limite do nível de endividamento, porque todos os clubes vivem com um nível de endividamento que não é tolerável face aquilo que o seu negócio gera e em todos os clubes as pessoas pensam que se deve ir buscar mais este ou mais aquele. Todos os presidentes, desde o clube mais modesto ao clube intermédio, esta noção de exigência está muito acima daquilo que é a capacidade sustentada dos clubes e portanto 6 futebol português começa a cheirar um bocadinho a barril de pólvora e é preciso ter a noção que o acesso a crédito não é ilimitado. Todos nós temos a noção de que estamos a queimar ou já queimámos os últimos cartuchos e que a vida será diferente daqui para a frente.

- Caso o plano não seja aprovado, é inevitável a venda do passe de alguns jogadores no final de cada época?

- Penso claramente que um clube como o Sporting precisa de vender, de criar turnover, precisa de ir ao mercado, mas também nessa questão é se preso por ter cão e por não ter...

- Está refém dessa política de estabilidade que não gera emoções?

- Este foi um bocadinho atípico porque as eleições são numa altura em que as coisas vão numa fase muito adiantada e é difícil inverter o que quer que seja.

Fonte: a Bola

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