domingo, 20 de dezembro de 2009

O Benfica-FC Porto de agora é o Benfica-Sporting de há 30 anos

O i entrevistou Artur Jorge, o único homem que jogou e treinou nos dois clubes



Perfeccionista do pontapé de moinho (remate acrobático na horizontal), Artur Jorge foi líder dentro e fora do campo. Primeiro presidente do Sindicato dos Jogadores, foi a voz activa que abanou o sistema laboral nos anos 70, proporcionando melhores condições aos futebolistas.

Noutro aspecto, queria conciliar estudos com futebol. Doutor soava melhor que jogador. Por isso, abandonou o FC Porto, onde jogava desde os 10 anos, para vestir a camisola da Académica. Na Coimbra dos estudantes, deslumbrou no curso de Filosofia e explodiu nos relvados. Em 1969, foi para o Benfica e teve a ousadia de se sagrar melhor marcador da 1.ª Divisão duas vezes seguidas (1971 e 1972), com o Pantera Negra ao lado. Esperava-se muito dele, mas o calvário das lesões estragou-lhe os planos ambiciosos. De 1973 a 1975, foi operado cinco vezes ao joelho e saiu da Luz. Três anos volvidos, abandonou o futebol com apenas 32 anos, ao serviço do Belenenses, após partir a perna num treino no Estádio Nacional.

Como treinador, Artur Jorge deu nas vistas no FC Porto, campeão europeu em 1987, e ajudou a afundar o Benfica na maior crise de títulos. É o único homem à face da terra que jogou no FC Porto e no Benfica e que treinou os dois rivais. O i entrevistou-o a propósito do clássico de amanhã. "Sou portuense e portista", apresenta-se o treinador, nascido na cidade do Porto há 63 anos.

Como jogador e como treinador, soma 42 clássicos. Lembra-se da estreia?

Sim, em 1964-65, na minha única época sénior pelo FC Porto. Empatámos [1-1] e o Eusébio foi expulso. E na primeira parte [38 minutos]. Se não me engano, foi a única expulsão da carreira dele.

Sim, foi a única expulsão dele. O árbitro era o Porfírio Silva, de Aveiro.

Disso não me lembrava, mas sei que foi um bocado caricato porque ele estava a ajeitar a bola para marcar um livre e, de repente, já estava fora do campo. Ao que parece, o Porfírio disse-lhe para não mexer na bola mas... Do que me lembro é de ouvir os aplausos nas Antas. Mas não eram aplausos de ironia. Nada disso. Tanto assim é que as palmas aumentaram de tom quando Pedroto [treinador do FC Porto] se levantou e cumprimentou o Eusébio, como que a dizer "foste mal expulso, mas sai de cabeça erguida". E a verdade é que Eusébio nem sequer foi castigado.

Depois dessa estreia sonante, teve mais nove clássicos como jogador. Alguma recordação especial?

Houve um que me ficou na memória porque marquei dois golos. Ou um. Sempre houve polémica. Um jornal deu-me o golo, o outro concedeu autogolo ao Valdemar. Bem, isso até nem vem ao caso, a verdade é que foi 6-0 para o Benfica nas meias-finais da Taça de Portugal. Isso foi em 1971-72 [30 de Abril], quando o Benfica levava 12 jogadores à selecção e jogavam dez de uma vez. Pense bem, 6-0! Onde é que alguma vez nos tempos de hoje há este desequilíbrio entre as duas forças?

Mas...

Hoje já não há esse "mas". Repare, eu sou portuense e portista. Como a minha família. Nasci no Porto e cheguei a ver, veja lá bem, jogos na Constituição [campo do FC Porto, de 1912 a 1952]. Lembro-me nitidamente de um FC Porto-Oriental e eu lá todo espremido entre os adeptos, que, não sendo muitos, entre 4 a 5 mil, enchiam aquele campo e conferiam uma atmosfera especial. Também vi jogos no Estádio do Lima [só utilizado para jogos grandes por ter mais lugares que o da Constituição]. Nessa altura, o FC Porto nem sempre era a terceira potência do futebol português. Agora, com o passar dos anos, com o Estádio das Antas, com o Dragão, com o centro de estágio no Olival, percebemos a real dimensão do clube. No meu tempo de criança, ninguém sonhava sequer que o FC Porto pudesse ser campeão europeu. Quando muito, campeão nacional e e... Agora é uma máquina que não vai parar. Se for travada, será um dano insignificante como uma folha de papel contra um Fórmula 1. Num futuro próximo, de 10, 20 anos, o FC Porto nunca mais perderá desta forma com o Benfica, como em 1972. Posso dizer que ao jogar nessa tarde dos 6-0 fiz parte de uma história irrepetível.

Sendo adepto do FC Porto, como era marcar ao clube do coração pelo Benfica?

Na altura, a rivalidade entre os dois não tinha o peso de agora. Aliás, os Benfica-FC Porto dos últimos anos são como os Benfica-Sporting de há 30 anos, em importância. São esses os jogos grandes da Liga. Na altura em que marcava golos ao FC Porto pelo Benfica, preocupava-me com outras coisas.

Aqui já fala como primeiro presidente do Sindicato dos Jogadores?

Evidente. Quando somos jovens, queremos mudar o mundo. Mas eu nem queria ir tão longe. Só queria que os jogadores de futebol fossem vistos como os restantes trabalhadores do país. Afinal, não descontávamos, não tínhamos condições de trabalho, nem uma série de coisas. Mas este país vivia um período... especial. Estávamos sozinhos, fechados ao resto do mundo. Quis mudar isso, constitui o Sindicato dos Jogadores Profissionais em Fevereiro de 1972, juntamente com Eusébio, Simões (Benfica), Peres e Pedro Gomes (Sporting), Rolando (FC Porto)... O Jorge Sampaio [futuro Presidente da República] foi o nosso advogado, com a missão de elaborar os estatutos para os apresentar ao líder do governo [Marcelo Caetano]. Nós só exigíamos justas condições, com cláusulas nos contratos, mais previdência e assistência obrigatórias profissionais. Mas isso era muito. Foi uma luta tremenda. É claro que adorava marcar golos, mas o melhor golo foi este, da idealização de uma profissão de futebolista igual à dos outros.

Já aqui dava a ideia de que seria um bom condutor de homens, de que podia dar treinador.

Não sei se foi aqui ou ali, mas o futebol sempre me fascinou. Claro que treinar uma equipa me pareceu o passo óbvio, encerrada que estava a carreira de jogador. Tive a sorte de jogar e conhecer um fenómeno sem igual, que era o Eusébio. Lembro-me de dois anos em que fui o melhor marcador do campeonato, com ele a jogar na minha equipa e ao meu lado. E houve outro ano [67-68], ainda eu estava na Académica, em que fui o segundo melhor do campeonato, com 28 golos, pois o Eusébio marcara 42, sagrando-se inclusivamente Bota de Ouro da Europa. Ora, a Associação de Estudantes de Coimbra deu-me um prémio: o de melhor marcador do campeonato, sem penáltis [gargalhadas e mais gargalhadas, sem se conseguir recompor]. O Benfica marcava muitos penáltis. Ai, ai... O incomparável Eusébio. É do que tenho mais saudades.

E do banco de treinador, sente saudades?

Tenho o banco da minha casa. Também é bom, sabe?

Compreendo, mas diga-me uma coisa: como é que leva o FC Porto ao paraíso, com o título europeu, e desce ao inferno no Benfica?

Ahhh, isso... Sabe, não gosto muito de falar disso. Para mim, uma equipa precisa de tempo e organização. O FC Porto deu-me isso. Havia jogos em 1984 ou 1985 em que pressentia que aquela equipa ia ser imbatível a todos os níveis, como aconteceu em 1987. O Benfica pediu-me isso, para ontem. Quis fazer uma equipa e comecei pela baliza. Trouxe o Preud'homme, mas a engrenagem não funcionou. Há pessoas boas e más. Há dirigentes competentes, outros nem tanto. Há os que remam para a mesma direcção e os da contracorrente. Enfim...

Mas essa estrutura aconselhável no FC Porto também lhe deu dissabores. Naquele FC Porto-Benfica em Abril de 91, resolvido pelo César Brito, nunca vi o Artur Jorge tão fora de si.

Por mais calmos que estejamos, acabamos por perder a cabeça. Vi um cartão amarelo [de Carlos Valente] porque estava nervoso com o fiscal-de-linha, mas ele portou-se mal durante todo o jogo, assinalando foras-de-jogo indevidamente. Mas são já situações antigas que não vale a pena esmiuçar agora. Tudo isso pertence à história e nem vale a pena falar, porque é uma porcaria.

O clássico dá a volta à cabeça?

Sem dúvida. Lembro-me de um jogo na Supertaça [1994] em que houve cinco expulsões [Nelo, Abel Xavier e João Vieira Pinto para o Benfica mais Rui Filipe e Secretário para o FCP]. Por isso, só peço correcção e bom futebol neste encontro. Os espectadores merecem isso. É o mínimo.

Fonte: I

3 comentários:

Fábio Ferreira disse...

Interessante era publicar a entrevista de Manuel José à Antena 1...

Livre Directo disse...

esta foi publicada primeiro... a outra foi disponibilizada à pouco... como deves compreender não vou por duas entrevistas aqui seguidas, até porque a outra é muito mais extensa.

Fábio Ferreira disse...

Era só aquela parte em que falava do Benfica, do Porto e de medo...