domingo, 3 de janeiro de 2010

"Eu dizia-lhe: 'Perrito vem cá', mas o Oceano nada..."

Jogou no Barça, derrubou os três grandes e levou o Farense à UEFA. Agora trabalha no porto de Barcelona. Para escapar à vida de cão



Baía, Couto, Deco, Figo, Jorge Mendonça, Pauleta, Pepe e Secretário são os portugueses que já foram campeões nacionais em Espanha. A resposta é modesta e só através de Robaina e Toñito (Sporting-2000). Mas a contribuição espanhola enche todas as medidas se falarmos de um catalão especial, não só pelo trabalho desenvolvido como jogador do Farense, entre 1984 e 1989 (11 golos em 87 jogos na 1.ª divisão), mas também como treinador do mesmo clube, onde se manteve por 11 épocas, dez delas seguidas (de Março de 1989 a Fevereiro de 1999), e conseguiu chegar à final da Taça de Portugal 1989-90, além da qualificação inédita para a Taça UEFA 1995-96.

Falamos do espanhol mais português de sempre, Paco Fortes. A 48 horas do seu 55.º aniversário, El Feo (o feio, como era alcunhado desde as camadas jovens do Barcelona, onde se formou como homem e jogador nos anos 70) já não está ligado ao futebol. A vida deu muitas voltas e Fortes teve de voltar à Catalunha para trabalhar no porto de Barcelona, como controlador. O emprego foi arranjado pela Associação dos Veteranos do Barça, que lhe encontrou esta solução na impossibilidade de gerir directamente os recursos económicos de ex-jogadores com menos de 65 anos, na idade da reforma, portanto.

Com vida feita em Portugal (sobretudo Farense, mas não só: Imortal, Lamas e Pinhalnovense; e uma passagem pelo Raja, de Marrocos), as coisas começaram a apertar em 2008, quando saiu do Pinhalnovense. A ausência de convites levaram a problemas e, a pouco e pouco, viu-se com nada, o que implicou o regresso a Barcelona, onde vivia dentro de uma carrinha em L'Hospitalet, a segunda cidade mais importante da Catalunha, a sul de Barcelona. Numa primeira instância, foi um primo de Paco quem o ajudou. Depois, apareceu o exército de salvação, a tal Associação de Veteranos. No posto de controlador, o irreverente Fortes (que, como jogador, dava 110 por cento em cada jogo e espumava da boca atrás dos rivais, características que o tornaram capitão de equipa em Faro) até já subiu um degrau na hierarquia do porto de Barcelona. Desde já, parabéns atrasados pela promoção, antecipados pelo aniversário. Ele conta episódios da meteórica carreira.

BARCELONA "Subi à primeira equipa do Barça no Verão de 1975 e lá encontrei Cruijff, Neeskens e Marinho Peres. Sim, esse mesmo, o brasileiro que mais tarde abraçaria em Portugal. Escusado será dizer que era uma equipa magnífica e ganhámos uma Taça do Rei, em 1978. Fui titular na final com o Las Palmas [3-1]. No ano seguinte, em que goleámos o Belenenses por 8-0, com hat trick do Krankl [avançado austríaco], num particular em Outubro, levantámos a Taça das Taças. Não joguei a final mas foi um orgulho enorme ter estado na Suíça, em Basileia, com o resto do plantel."

CRUIJFF "Era tudo um espectáculo: eu jogava no clube da minha vida, era titular, à excepção da tal última época [1978-79], e aprendia todos os dias com Cruijff, que era o meu companheiro de quarto. Aliás, uma vez ele ajudou-me a aumentar o ordenado, após uma reunião marcada por ele, entre ele e o presidente. O Cruijff era, de facto, uma pessoa de valor, com um coração imenso, sempre atento aos pormenores."

SELECÇÃO "Em 1976, o seleccionador de Espanha, o húngaro Kubala, ex-jogador do Barcelona, convocou-me. Fiz o meu único jogo pela selecção espanhola, em Bucareste [16 de Novembro], na qualificação para o Euro-76. Era proibido perder e o empate qualificava-nos para os quartos-de-final, numa altura em que só quatro selecções se qualificavam para um Europeu. Fui titular, lesionei-me e empatámos 2-2, a ganhar por 2-0, com um golo do Villar, aquele que agora é presidente da federação espanhola e aparece sempre ao lado do Gilberto Madaíl a apresentar a candidatura da organização do Mundial-2018. Ele era defesa do Athletic Bilbao."

OCEANO "Aos 29 anos, no Verão de 1984, cheguei a Portugal, via Valladolid. E foi duro. Logo no segundo jogo [2-0 para o Sporting em Alvalade, golos de Lito e Manuel Fernandes], havia um médio negro grande, daqueles que nunca mais acabavam, e que me marcava de forma implacável. Ele só me dava porrada, mas muita mesmo! Às tantas, irritei-me e comecei a assobiar e a dizer alto, na direcção dele: 'Perrito, vem para cá, vem para cá.' E ele nada. Pois claro. Só depois é que percebi que perrito não significa nada em Portugal. Diz-se cão. Mas fiquei com esse jogo atravessado. Na segunda volta [1-1 em Faro], apanhei-o a jeito e posso assegurar que tivemos as nossas divergências. De verdade..."

A VINGANÇA DO CHINÊS "Em 1989-90, o Farense estava na 2.ª divisão e era eu o treinador. Subimos à 1.ª e fomos à final da Taça de Portugal, com o Estrela. Eles eram mais fortes mas, mesmo assim, empatámos 1-1 no Jamor e forçámos jogo de desempate. Aí, perdemos 2-0. Na época seguinte, ganhei 1-0 no campo deles. Foi a vingança do chinês."

CHAMEM A POLÍCIA "Também nessa época, em 1990-91, houve um problema como nunca vi, em Faro. No jogo com o FC Porto, estava 0-0 até que o árbitro [Sepa Santos, de Lisboa] expulsou um jogador nosso por engano [o avançado Mané]. Foi perto do fim e os os ânimos dos adeptos começaram logo a aquecer. Depois, em cima dos 90', sofremos o 1-0 [Paulo Pereira], numa incrível dupla falta de Aloísio e Baltasar sobre o nosso guarda-redes. O árbitro mandou seguir. Bem... nem lhe conto. Ou melhor, conto: o FC Porto demorou horas para sair do estádio. Lá fora, estava uma confusão, até houve tiros. Apanhámos três jogos de suspensão. Jogámos no Barreiro [0-1 com Sporting], no Montijo [0-0 com União Madeira] e em Setúbal, onde o público era todo do Benfica mas ainda empatámos 2-2 com Vata a anular a nossa vantagem."

JANTARES OFERECIDOS "Por falar nisso, o meu primeiro golo em Portugal foi ao Benfica [1-0 em Faro, a 18 de Novembro de 1984, no mesmo dia dos 8-1 do Sporting ao Braga, com 2-1 aos 74 minutos]. Foi uma boa jogada do Rui Lopes que ludibriou dois defesas, cruzou e eu estiquei-me todo. Há 14 anos que o Farense não ganhava ao Benfica. Imagina a festa... Nesse domingo, Faro nem dormiu. Na altura, o melhor em campo ganhava o prémio de um jantar em três restaurantes diferentes da cidade. O mesmo é dizer que passei metade da semana a jantar fora de casa, sem pagar."

FC PORTO SEM TÍTULO "Outra memória agradável foi aquele golo que marquei ao super-Mlynarczyk, do super-FC Porto, três dias antes do calcanhar de Madjer ao Bayern, na final da Taça dos Campeões-87. Nesse dia, o Farense jogou em campo neutro [Portimão] mas ganhámos 1-0, enquanto o Benfica bateu o Sporting por 2-1 na Luz e festejou o título."

VAIS LEVAR QUATRO "Em Abril de 1991, o Farense já lutava para não descer de divisão. A seis jornadas do fim, o caminho estava minado com jogos em Alvalade e na Luz. Na véspera do jogo em Alvalade, passei o dia com o Marinho Peres, treinador deles e grande amigo desde os tempos que partilhávamos balneário no Barcelona. Ele disse-me a rir: 'Vais levar quatro.' E eu respondi-lhe, meio em catalão, meio em portunhol: 'Vê lá se não ficas mal-visto perante os teus adeptos.' Foi 1-0 para mim, golo de Curcic. E o Marinho saiu assobiado de Alvalade. Nas cinco jornadas seguintes, só consegui ganhar mais um jogo [3-0 ao Estrela, de Jesualdo Ferreira]. A vitória de Alvalade salvou-nos mesmo da 2.a divisão."

BIGODE RAPADO "Era a minha imagem de marca há 23 anos mas promessas são promessas. Em 1997-98, prometi rapar o bigode e caminhar 60 quilómetros, de Faro até Ayamonte, para agradecer à Virgem do Rossio, se ficássemos na 1.a divisão. Na última jornada, Belenenses e Varzim já tinham descido. Faltava um outro condenado, a definir entre nós [34 pontos], Chaves [34] e Académica [35]. Nós ganhámos 1-0 ao Rio Ave [Djukic, 44'], enquanto os outros empataram entre eles 0-0, em Chaves. Desceu o Chaves e lá tive de fazer o bigode. Quando cheguei a casa, a minha filha nem me reconheceu. Na manhã seguinte, levantei-me antes das seis da manhã, e lá me aventurei, ao lado do meu adjunto Joaquim Sequeira, para Ayamonte. Nunca tinha andado tanto a pé. Cheguei rebentado a casa, às oito da noite, mas valeu a pena, só de ver a alegria dos farenses. Tenho saudades deles, muitas, imensas. Mas tenho a certeza de que tudo se vai recompor. Eu e o clube."

Fonte: I

Sem comentários: