sábado, 23 de janeiro de 2010

Peixe: "Eu e o Fehér jogámos squash às escondidas do FC Porto"

O actual seleccionador dos sub-16 fazia de Carlos Manuel nos jogos de rua e deixou o futebol depois da morte do grande amigo húngaro



Dentro do campo, era um leão. Por defeito (de formação). Fora dele, é um senhor. Simpático e acessível. Desprendido e bem-humorado. Peixe é o seleccionador nacional dos sub-16 mas tem uma carreira ímpar como futebolista, que começou aos 13 anos em Alvalade, a dormir numa cama improvisada no meio do centro de estágio do Sporting, e acabou aos 30 em Leiria, devido ao desgaste físico e, sobretudo, emocional, relacionado com a morte do seu grande amigo Miklos Fehér.

Pelo meio, foi eleito o melhor jogador do Mundial de juniores em 1991, coleccionou nove títulos, representou os três grandes do futebol nacional, foi internacional AA e ainda se aventurou lá fora, no Sevilha, sem esquecer os convites formais de Juventus, via telefone com Rui Barros, e Fluminense. Nesses tempos, Peixe fumava para descontrair e jogava por prazer, com ideia de acabar a carreira no Sporting, o clube do coração, embora a sua família seja benfiquista. O destino assim não quis mas Peixe não guarda mágoa de nada, nem se lamenta. Porque há coisas mais importantes e sérias na vida. Como a própria vida. A morte de Fehér é o exemplo. Quando o húngaro caiu desamparado no relvado D. Afonso Henriques, a 25 de Janeiro de 2004 (faz cinco anos depois de amanhã) e nunca mais se levantou, Peixe sentiu-se atingido e resolveu também ele desligar-se do futebol. "Foi o clique", justifica.

Boa tarde, estou a falar com Peixe, o melhor jogador do Mundial sub-20 em 1991?

Ganhei a Bola de Ouro como jogador e já me estou a preparar para a de treinador [risos]. Já tenho um espaço lá em casa guardado para o efeito [mais risos].

Esse Mundial mudou a sua vida?

A minha vida e a de todos os outros. Houve maior pressão e começaram a falar mais em nós, o que foi bom. Foi óptimo. Serviu para crescermos e melhorarmos.

É recordado pelo público em geral como o homem que poderia ter feito a diferença nos 6-3 entre Sporting e Benfica, em Maio de 1994. Consigo em campo, punha o JVP na ordem?

As pessoas fazem essa comparação há muito tempo e exprimem algumas interrogações sobre isso. A minha posição coincidia com a do João. Talvez ele tivesse mais algumas dificuldades ou talvez eu tivesse mais dificuldades. Mas a história desse jogo [14 de Maio de 1994] começa antes, num jogo nas Antas, uma semana e meia antes do dérbi [3 de Maio]. O Sporting defrontou o FC Porto e perdeu 2-0 num jogo marcado pelas três expulsões de Carlos Valente. Primeiro foi o Juskowiak, ainda na primeira parte [35', vermelho directo, por protestos], depois o Vujacic [60', duplo amarelo] e, finalmente, eu [62', também vermelho directo por entrada sobre Jaime Magalhães]. A minha expulsão foi a única que considero justa - atropelei, sem querer, pois queria jogar a bola, um jogador do FC Porto no meio-campo -, mas foi um jogo esquisito, com uma arbitragem a condizer. Como vi o vermelho directo, fiquei suspenso por dois jogos. Falhei Beira-Mar [4-0 para o Sporting, em Aveiro] e Benfica. Portanto, tive de ver esse encontro atrás da baliza em que o João Vieira Pinto marcou os três golos ao Lemajic. Até ao intervalo, senti que podíamos dar a volta, mas foi a noite do João e do Benfica.

Felicitou o João depois do jogo?

Não estava com cabeça para o ver, nem para ouvir falar do João. Mas depois é claro que lhe dei os parabéns.

No encontro seguinte [1-0 para o Sporting, a 1 de Dezembro de 1994], Peixe já lá estava e isso notou-se.

Na primeira bola dividida entre mim e o João, embrulhámo-nos e ele deu-me um pontapé na boca. Fiquei sem dois dentes e ainda estou à espera de que ele mos pague. Estou a brincar! Foi um lance normal, em que caímos e fizemos tudo para nos levantar o mais depressa possível à procura da bola.

Recuemos no tempo. Como é que um rapaz da Nazaré chega ao Sporting?

Antes disso, há uma outra história. Eu jogava no Grupo Desportivo Os Nazarenos [actual 7.o classificado da Divisão de Honra da AF Leiria] e fui treinar ao Benfica com um amigo. Nessa altura o treinador era o senhor Mário Coluna [bicampeão europeu, decacampeão nacional e capitão do Benfica por sete épocas] e ele quis que eu ficasse, mas o centro de estágio do Benfica estava cheio. A solução passava por ir viver para uma pensão em Lisboa, ali na Baixa. E eu, um miúdo da província, não achei benéfico ficar sozinho em Lisboa, aos 12/13 anos, num meio tão movimentado. Nunca tinha visto um avião tão perto, nem sequer um semáforo. Tudo aquilo era novo e seria uma mudança radical e violenta. Só passados uns tempos é que fui novamente a Lisboa, dessa vez ao Sporting, então treinado por Carlos Pereira, que até há bem pouco tempo foi adjunto do Paulo Bento. Lá, o centro de estágio também estava cheio, mas puseram um colchão no meio de um quarto e dormi nessas condições por três meses.

Quem jogava nesse Sporting?

Um tal Figo [risos], entre muitos outros.

E como é que correram as coisas?

Foi tudo fantástico. No primeiro ano, fomos campeões nacionais só com vitórias, numa final com o FC Porto, em Viseu, no Fontelo [em 1986-87]. Depois, nunca mais ganhei nada e fui duas vezes vice- -campeão, uma delas numa final resolvida nos penáltis, frente ao V. Guimarães, Mas devo tudo ao Sporting. O meu primeiro passaporte foi tirado quando jogava no Sporting. A minha primeira viagem de avião também. A minha primeira noite num quarto de hotel idem. Enfim, descobri o mundo pelo Sporting, porque os clubes têm um papel fulcral na formação como jogador e como indivíduo.

Como explica o cachecol do Benfica à porta do seu quarto no centro de estágio do Sporting?

Está bem informado. Mas explico isso em segundos. Eu adorava futebol e devorava futebol. Estava em Lisboa. Sporting e Benfica jogavam em fins-de-semana alternadamente, portanto ia sempre ver esses jogos. Numa dessas vezes, o Benfica ganhou 3-1 ao FC Porto com três golos do Rui Águas [e um do Gomes, três semanas depois dos 7-1 do Sporting ao Benfica] e comprei um cachecol do Benfica à saída do estádio. Levei-o para o centro de estágio e esqueci-me de o guardar. No dia seguinte, lá tive de me explicar. Mas ainda há outro motivo: a minha família é toda benfiquista e eu cresci com aquele golo do Carlos Manuel em Estugarda [num fabuloso remate a 30 metros que garantiu a vitória de Portugal sobre a RFA, no apuramento para o Mundial-86, no México]. Eu era o Carlos Manuel nos jogos que fazia na rua. Ora, o Carlos Manuel era do Benfica.

E chegou a jogar com Carlos Manuel?

Não, mas ele pertencia ao Sporting quando me estreei na equipa principal [2 de Dezembro de 1990]. Nesse dia, jogámos no Barreiro, com o Farense, e ganhámos 1-0 [golo do suplente João Luís II, aos 79']. Fui titular [como central, ao lado de Miguel], mas o Carlos Manuel não foi convocado.

Melhor ainda, chegou a marcar algum golo como aquele do Carlos Manuel?

Ahhh, não tinha potência para aquilo.

Mas lembro-me de que uma vez marcou quase do meio-campo.

Sim, é verdade, no FC Porto, mas foi um misto de engano e sorte. Tentei afastar a bola o mais possível da minha zona e como estava algum vento... [foi o 3-1 final sobre a União Leiria, a 13 de Março de 1999; o guarda-redes leiriense era o internacional croata Zitnjak].

Por falar nisso, como foi parar ao FC Porto, sendo um produto de Alvalade?

A resposta é longa. À partida para a época 1996-97, no Sporting, pedi um aumento de salário aquando da renovação do contrato. Era titular no Sporting e jogava na selecção. Impunha-se o querer ganhar mais, mas esse facto não foi tomado em consideração pelo presidente Sousa Cintra. Ainda recusei o Benfica e depois apareceu o Sevilha, onde acabei por encontrar uma realidade desajustada, num clube com ordenados em atraso e que desceu à 2.a divisão porque estava endividado. Estive lá uns seis meses, onde conheci um senhor jogador chamado Davor Suker, já aí pretendido por Real Madrid, Barcelona e outros grandes de Inglaterra, além de me ter cruzado com três treinadores - um deles foi o Toni [bicampeão nacional pelo Benfica e finalista da Taça dos Campeões em 1988] - e três presidentes - um deles o Del Nido, que é o actual dirigente máximo do Sevilha. Nessa situação, pedi para sair e voltei ao Sporting, depois de aceitar um convite do presidente Santana Lopes. À minha espera, o tal contrato que tinha pedido no Verão anterior. Estreei-me num Sporting-FC Porto, resolvido com dois golos do Domingos. Antes desse jogo, dois helicópteros sobrevoaram o estádio para ver se lhe tiravam a imensa água [gargalhadas sonoras]. Fiz uns jogos e depois o Octávio Machado pôs-me a treinar à parte, numa fase em que entraram na direcção do Sporting muitas pessoas novas que não estavam nada identificadas nem com o clube, nem com a sua mística, nem com o seu potencial humano. E pronto, apareceu o FC Porto. Fim da resposta a esta pergunta [gargalhadas mais sonoras ainda].

Impôs-se com facilidade no FC Porto?

No ano do tetra, só fiz um jogo, com António Oliveira. No ano do penta, com Fernando Santos, é que joguei mais [13 vezes]. Mas há uma história pelo meio. A concorrência era pesada, com Paulinho Santos, Doriva e Chainho. De Agosto a Dezembro, só tinha jogado uma vez para o campeonato. Estávamos na reabertura do mercado e quis sair para adquirir ritmo competitivo. O único clube que se chegou à frente foi o Fluminense e até um director-geral brasileiro se deslocou ao Porto para falar comigo. Reunimo-nos e disse-lhe que ia pensar. No dia seguinte fui à SAD do Porto para dizer que queria sair e encontrei o presidente Pinto da Costa no edifício. Ele soube da situação e pediu-me para ficar no Porto, que ainda ia jogar muito. A verdade é que fiquei e marquei o tal golo à U. Leiria no jogo em que recuperei a titularidade. Até ao final da época, voltei a jogar com regularidade e tudo estava bem.

Até os problemas voltarem.

Pois, é verdade. Infelizmente. Eu treinava-me bem, mas não jogava por razões que me ultrapassavam e que eram extrafutebol [as relações entre Pinto da Costa e o empresário português de jogadores, José Veiga, tinham-se deteriorado na sequência da transferência de Sérgio Conceição para a Lazio e Peixe era jogador de Veiga]. Por isso, fui parar à equipa B do FC Porto. Compreendi os motivos mas não os aceitei.

Por isso é que foi jogar para o Alverca?

Mais ou menos. Eu queria cumprir o meu contrato com o FC Porto até ao fim, mas estava a treinar com a equipa B e isso era um problema. Até que um elemento da SAD do FC Porto me falou de ir para o Alverca. Disse-lhe que não, porque queria outro campeonato - não o português. Foi então que esse senhor me aconselhou a ir para o Alverca ou então ficava a treinar com a equipa B mais seis meses. Aí, aceitei.

Tinha alguma na manga com essa de jogar noutros campeonatos?

Era um desejo, sim, porque sentia que podia mostrar mais.

Mas tirando aquela oferta do Fluminense, que outro clube o contactou?

Só a Juventus, e no início da década 90. Foi o Rui Barros [internacional português que jogou pela equipa de Turim entre 1987 e 1990] que me telefonou a convidar, mas eu estava bem no Sporting e queria acabar a carreira no clube que me formou como homem e jogador. Veja lá como são as coisas [risos]. Disse--lhe que não e a conversa ficou por aí.

Do Alverca saltou para o Benfica e completou o ciclo dos três grandes.

O interesse do Benfica era antigo. Na época do penta do FC Porto, em 1998-99, houve uma reunião tipo G3 entre Pinto da Costa, Manuel Vilarinho e Dias da Cunha, para uma troca de jogadores, mas eu não quis, para honrar o compromisso com o FC Porto. Só após a experiência no Alverca é que me senti animado para aceitar o repto do Benfica, através do convite de Jesualdo Ferreira. Queria mostrar tanta coisa, mas as sucessivas operações ao joelho baralharam o esquema. As dores constantes desmotivaram-me. Só fiz dois jogos [1-0 ao Belenenses na Luz e 0-0 no Bessa, com o Boavista], mas treinava com infiltrações, cheio de dores e limitado fisicamente. Ora, isso não era vida para ninguém.

As lesões hipotecaram o seu futuro, apesar de ter feito ainda meia época na União Leiria, em 2003-04?

Sim, os joelhos ajudaram, mas houve outro factor, aquilo que aconteceu ao Miklos Fehér. Para quê continuar? Já não valia a pena. A morte dele fez-me pensar, pensar e pensar. Fez-se clique na minha cabeça, entrei em luto e abandonei o futebol.

Vocês jogaram no Porto e no Benfica.

Éramos grandes amigos. Almoçávamos e jantávamos muitas vezes juntos, sobretudo no FC Porto, porque a nossa situação era idêntica, no que toca a treinar à parte, na equipa B. Certa vez, no último ano, jogámos squash às escondidas. Como não competíamos no futebol e queríamos ter o complemento físico de volta, entrámos num torneio. Quando o reencontrei no Benfica, foi uma alegria.

Fonte: i

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por partilhar estas histórias connosco: Miklós Fehér deve ter sido um Ser Humano acima da média, no que diz respeito à sua força de vontade, espírito de luta e lealdade para com os seus amigos. Merecia ter tido mais sorte na sua carreira e principalmente, muitos mais anos de vida. Nunca me esquecerei dele.